Thursday, April 22, 2010

O que sempre soube dos homens mas tive à mesma de perguntar (a generalização em pessoa)

“Normalmente tratam-nos bem, mas sabem ser brutos e ofensivos sem sequer reparar. São naturalmente defensivos com as mulheres, acham que devem ser assim. Não sabem bem o que quer dizer “nada”, “tu é que sabes” e “temos de falar” mas sabem que há uma grande probabilidade de terem feito merda. Não compreendem as mulheres e nem querem. A maior parte das vezes acham que a mulher está a exagerar e, invariavelmente, perguntam "mas qual é o problema?". Gostam de chamar paneleiros a alguns homens, especialmente se forem amigos das suas mulheres. Gostam de agir como um cão a fazer xixi à volta do território. Sabem ser bulldogs mas também cãezinhos amestrados, e, mesmo nestes casos, gostam de mostrar o dom da protecção, de dizer “está tudo bem” para assegurar que está tudo sob (seu) controlo. Apaixonam-se porque sim, não sabem bem a razão. Lêem pouco e orgulham-se. Aliás, gostam muito de se orgulhar de variadíssimas coisas onde centram a sua vida, desde o tamanho do seu pequeno “ego” até, incompreensivelmente, ao seu carro. Embora não admitam gostam de ser ensinados e moldados, ou, pelo menos, deixam facilmente que isso aconteça e fingem não perceber. Gostam de dominar. Gostam de uma mulher que os saiba dominar. Gostam que a mulher olhe para eles como seres que se enquadram bem num restaurante fabuloso, mas onde se sentem mesmo bem é numa tasca a comer o courato e a ver o Benfica. Têm uma relação visceral com a cerveja. Gostam de wisky no final de uma refeição. Mas jola é jola. Se o sexo vai bem, está tudo bem e só percebem que a relação vai mal quando chega aí. Consideram uma parvoíce gastar dinheiro em grandes vestidos e em pormenores. Vêm a mulher como um todo: ou está bonita, ou não está, não há cá “a calça fica-te bem na perna mas o top não condiz com os brincos que trazes”. Não discutem coisas pequenas. No entanto são capazes de, por coisas pequenas, andar à pancada e no final fazem um olhar de “se passas à minha frente mato-te”, mas nunca matam. Sabem ser óptimos pais, óptimos educadores, mas continuam a considerar que a mulher é que deve ser a encarregada de educação. São sempre machos e mesmo quando choram demonstram que estão a passar um oásis da sua existência. Sabem ser maus, mas não são gratuitamente maus, por mais mesquinha que seja a razão. Não perguntam indicações. Sabem sempre tudo. Quando não sabem fingem que lhes é indiferente. Estão-se borrifando se a mulher vai a um jantar de amigas, porque assim deixa-lhe a casa para ver a sportv 1, 2 e 3. Não admitem sequer a hipótese de que alguma vez serão traídos. Protegem-se uns aos outros de uma forma impressionante. Gostam de dizer asneiras. Gostam de chamar nomes aos amigos como forma de demonstrar afecto. Gostam de dormir nus. Gostam de fazer muita coisa nus. Gostam de se embebedar, ser sentimentais e depois dizer que foram sentimentais porque se embebedaram. Gostam de gostar de alguém a sério mas nunca, nem aí, deixarão de olhar para o decote de uma mulher e pensar “olha o que chove”. E isso não diminuirá em nada o que sentem.”
Nádia Costa

Wednesday, April 21, 2010

"O que sempre soube das mulheres mas tive à mesma de perguntar" - um arrepio que me deram, um riso e uma lágrima

Tratam-nos mal, mas querem que as tratemos bem. Apaixonam-se por serial-killers e depois queixam-se de que nem um postalinho. Escrevem que se desunham. Fingem acreditar nas nossas mentiras desde que tenhamos graça a pregá-las. Aceitam-nos e toleram-nos porque se acham superiores. São superiores. Não têm o gene da violência, embora seja melhor não as provocarmos. Perdoam facilmente, mas nunca esquecem. Bebem cicuta ao pequeno-almoço e destilam mel ao jantar. Têm uma capacidade de entrega que até dói. São óptimas mães até que os filhos fazem 10 anos, depois perdem o norte. Pelam-se por jogos eróticos, mas com o sexo já depende. Têm dias. Têm noites. Conseguem ser tão calculistas e maldosas como qualquer homem, só que com muito mais nível. Inventaram o telemóvel ao volante. São corajosas e quando se lhes mete uma coisa na cabeça levam tudo à frente. Fazem-se de parvas porque o seguro morreu de velho e estão muito escaldadas. Fazem-se de inocentes e (milagre!) por esse acto de vontade tornam-se mesmo inocentes. Nunca perdem a capacidade de se deslumbrarem. Riem quando estão tristes, choram quando estão felizes. Não compreendem nada. Compreendem tudo. Sabem que o corpo é passageiro. Sabem que na viagem há que tratar bem o passageiro e que o amor é um bom fio condutor. Não são de confiança, mas até a mais infiel das mulheres é mais leal que o mais fiel dos homens. São tramadas. Comem-nos as papas na cabeça, mas depois levam-nos a colher à boca. A única coisa em nós que é para elas um mistério é a jantarada de amigos – elas quando jogam é para ganhar. E é tudo. Ah, não, há ainda mais uma coisa. Acreditam no Amor com A grande mas, para nossa sorte, contentam-se com pouco.

Rui Zink

Thursday, March 25, 2010

...

Deitaste-me sobre a mesa.
Dissecaste o meu olhar ávido, meu desejo de aventura.
Tuas mãos perscrutaram o licor da minha alma, deglutiste a minha força, inteiraste-te do meu cérebro, sussuraste em mim.
Invadiste o meu umbigo, quebraste sem temor os movimentos do meu pensar.
E quando me olhaste, metade, terra, tensão, mergulhaste no meu fôlego, tiraste-me os "ses", tiraste-me o "não".

Monday, March 15, 2010

Estejamos vivos. À nossa.

"Morre lentamente quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem destrói o seu amor-próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
Repetindo todos os dias o mesmo trajecto,
Quem não muda as marcas no supermercado,
não arrisca vestir uma cor nova,
não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
Quem prefere O "preto no branco"
E os "pontos nos is" a um turbilhão de emoções indomáveis,
Justamente as que resgatam brilho nos olhos,
Sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
Quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,
Quem não se permite,
Uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da Chuva incessante,
Desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,
não perguntando sobre um assunto que desconhece
E não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
Recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior do que o
Simples acto de respirar.
Estejamos vivos, então!"
Pablo Neruda
Thanks M.

Sunday, March 14, 2010

Desse (teu) lado

Imponho-me parar. Avaliar-me como nunca, porque nunca me reconheci uma incapaz de ser, diferente, o mesmo ou mais. Uma limitação perturbadora de quem ama. Ora queremos demais, ora queremos que nos dêem demais, e um dia olhamos a profundidade de um olhar e quedamo-nos num reflexo do que quisemos com tanta força que não nos pudemos imaginar ali. Ali. Na verdade, a chave para o melhor relacionamento é fazermos com que cada dia seja um primeiro encontro, conhecermos qualquer coisa nova, uma pestana, o que for!, mas com o trunfo crescente de um conhecimento maior, do beijo nos envolver mais deliciosamente na clara certeza de um copo de chá quente. Não nos enganemos, nunca!, haverá sempre uma nova ou antiga pestana a conhecer. Há um cérebro tão complexo e rocambolesco como o nosso do outro lado. Ou não. Mas é sempre melhor (e mais doce) perspectivar e sonhar assim.

Thursday, March 04, 2010

Visão de um dia qualquer

Há dias clarificadores. Sem razão aparente (mas por alguma, certamente) algo te desperta. Sentes-te crente de um determinado factor/pessoa/sonho da tua vida e tudo se afigura mais feliz e desperto (e uma coisa não implica a outra - a conjugação é um oásis). A compreensão daquilo com que podes contar é uma bênção, é importante conseguires entender de onde podem vir os golpes, antecipá-los sem pensar muito neles, preparares o remédio para um corte que, mais ou menos profundo, terá sempre de ser sarado. E, para isto, é preciso tempo. Tempo de reflexão e não reflexão, entendimento e análise do (teu) mundo e uma abertura preciosa para quaisquer conspirações do Universo. Quando assim estamos é mais fácil que ele conspire a nosso favor.
E aquele bom dia.

Wednesday, February 24, 2010

Nunca li um texto que fosse tão eu.

Tenho o santo horror da frieza calculada, da boa educação, do prudente juízo duma mulher. Aos homens pertence tudo isso, e a mulher deve ser muito feminina, muito espontânea, muito cheia de pequeninos nadas que encantem e que embalem. Meu amigo, se esperas ter uma mulher sem areia nenhuma, morres de aborrecimento e de frio ao pé dela e não será com certeza ao pé de mim... Comigo hás-de ter sempre que pensar e que fazer. Hás-de rir das minhas tolices, hás-de ralhar quando elas passarem a disparates (hão-de ser pequeninos...) e hás-de gostar mais de mim assim, do que se eu fosse a própria deusa Minerva com todo o juízo que todos os deuses lhe deram.”

Florbela Espanca

Friday, February 19, 2010

O hoje e uma passagem de tempo

Quem diria que eu faria a reforma do tempo. A reforma dos dias. De todos os dias, mas especialmente de alguns... isso deixa-me feliz. A passagem do tempo (que traz tantos inconvenientes ao ser humano) traz-lhe também a vantagem do esquecimento. Esquecemos (tantas vezes) o quando fomos felizes a comer aquele gelado naquela esplanada daquele café no dia x do mês y do ano da graça de alguém, mas o esquecimento do que nos é dificilmente esquecível é o presente de compensação. Ora, neste dia que mudou a minha vida (já que 19 de Fevereiro há três anos não é um dia x de um qualquer mês y), agradeço o que vai e o que fica, a retenção das camadas de vida que nos aquecem no futuro. E hoje sinto-me quente.

Wednesday, February 10, 2010

Uma lição de vida

Estou contente porque a minha querida não tem ainda o afecto exclusivo e único que há-de sentir um dia por um homem, apesar de todas as suas teorias que há-de ver voar, voar para tão longe ainda!... E no entanto, elas são tão verdadeiras!
Ainda assim, minha querida Júlia, uma das coisas melhores da nossa vida de tão prosaico século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério; as nossas pétalas de rosa e a nossa coroa de espinhos. O amor único, doce e sentimental da nossa alma de portugueses, o amor de que fala Júlio Dantas, «uma ternura casta, uma ternura sã» de que «o peito que o sente é um sacrário estrela­do», como diz Junqueiro; o amor que é a razão única da vida que se vive e da alma que se tem; a paixão delicada que dá beijos ao luar e alma a tudo, desde o olhar ao sorriso, — é ainda uma coisa nobre, bela e digna! Digna de si, do seu sentir, do seu grande coração, ao mesmo tempo violento e calmo. Esse amor que «em sendo triste, canta, e em sendo alegre, chora», esse amor há-de senti-lo um dia, e embora morto, perfumar-lhe-á a alma até à morte, num perfume de saudade que jamais o tempo levará!
No entanto, o casamento é brutal, como a posse é sempre brutal, sempre! O melhor beijo, o beijo mais doce, aquele que se não esquece nunca, é aquele que nunca se deu, disse-o um dia um poeta, e eu creio. Só para as mulheres, as tais mulheres mais animais que espirituais, é que o casamento não é a desilusão de sempre, — mas então nós? Se ganhamos um grande amigo, o que nós sofremos muitas vezes! A revolta de tudo quanto há de delicado em nós, e que se ofende e se indigna com as afrontas que são afinal uma grande lei da Natureza! E não há homem, por superior que seja, que com­preenda esta revolta e que a desculpe! Em tudo eu penso exactamente o mesmo que a minha querida Júlia; não há nada, tanto para os homens como para a mulher, que valha a liberdade tanto alma como de pensa­mento.
É o casamento um grilhão de flores e risos? De acor­do, mas é sempre um grilhão.
Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém, mas nunca abdique nem uma só das suas graças, nem uma só das suas ideias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência, que fica tão bem às mulheres boni­tas; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro; nós invertemos muitas vezes os papéis, e em proveito deles, e depois as consequências são muitas vezes as paixões que devastam uma vida inteira por criaturas que se dignam dar, por último, como humilde mortalha, um olhar de compaixão!
O melhor de todos os homens não vale um fanatismo, creia-me, e embora a nossa alma, com essa ânsia de amor, de ternura que canta sempre em nós, se lhes dedique completamente, que eles o não sai­bam nunca, que não suspeitem sequer!... Abdicando um grau da nossa realeza, teremos de descer sempre, sempre, até ao fim. Não é verdade isto?
Florbela Espanca

Monday, February 08, 2010

Brotar de alma

E assim, do que nada era, se nasce e vê brotar um pequeno tudo. Sem transpirar o que tem de um ardor especial, deixa-se queimar em lume, o brando, confortável mas constante, sempre presente, sempre lume. Pode haver (há) momentos em que a humanidade mói e polui mas o choque não existe e o olhar adiante é mais forte. Sem grandes transições e restrições queria apenas dizer-te (e aqui que sei não leres) que no receio de hoje construiremos a força de amanhã. E eu confio em ti...

Thursday, February 04, 2010

Noção de Lar.

Quando li Os três casamentos de Camila S. fui apanhada de surpresa. Confesso que não esperava mergulhar no amor recôndito de alguém tão profundamente frágil e forte, de um escancarar de aceitação do que é a vida e o sonho, o que é o "tempo a seu tempo". O Pranto de Lúcifer, Os Pássaros de Seda, O Prenúncio das Águas, A Trança de Inês e A Flor do Sal, são tudo visões de um mesmo olhar que li, no qual o meu mundo descansa e viaja.
No entanto, houve uma surpresa maior que esta. Estava eu sentada, em espera de mais um daqueles concertos de música clássica que engulo na Gulbenkian, quando a vejo, "A" Rosa Lobato Faria, com o olhar profundo, a apoiar o andar daquele que reclama ser o homem da sua vida (que veio a falecer no dia do meu aniversário...). Olhou para mim e sorriu. Naquele momento apreendi o que já tinha lido no "seu" (O) Sétimo Véu: porque não vale a pena cumprir feitos heróicos, dar a volta ao mundo num bote, ganhar o prémio Nobel, descobrir a pólvora, se não tivermos um lugar onde voltar, onde alguém nos espera com uma sopa e um sorriso.
Fará falta. Como dizias: "À nossa".
Only the good...

Monday, January 18, 2010

Dia a Dia em pacotes de açúcar

Um dia vou ter contigo quando menos esperares. Um dia troco o certo pelo incerto. Um dia vou-me apaixonar pela pessoa certa. Um dia levo-te para um elevador e carrego no "stop". Um dia quebro a rotina. Um dia sentes um pontapé na minha barriga. Um dia parto a loiça toda. Um dia levo-te o pequeno-almoço à cama. Um dia vais ao castigo. Um dia faço-te a folha. Um dia faço-te um striptease. Um dia vou conquistar a minha paz de espírito e a minha liberdade. Um dia vou-te provar. Um dia mando o chefe passear. Um dia deixo de pensar em ti e parto para outra. Um dia atiro-me de cabeça. Um dia vou lutar pelo que quero. Um dia digo-te que o teu lugar é comigo. Um dia hei-de compensar-te por tudo. Um dia arrisco a ver se petisco. Um dia dou um beijo à homem aranha. Um dia vou falar menos e ouvir mais. Um dia farei de ti a pessoa mais feliz do mundo. Um dia beijo-te a meio de uma frase. Um dia largamos tudo e fugimos juntos. Um dia vou sair para a rua e gritar que sou feliz. Um dia ainda faço 300 kms para estar contigo. Um dia peço-te em casamento. Um dia vou ter um filho lindo. Um dia nunca mais digo "um dia".

Um dia procuro-me e encontro-te.

Friday, January 15, 2010

Consciência

A cada hora que passa uma suave brisa de norte arrasa com as certezas. Ou mais do que uma brisa?! Não há um momento em que possamos inevitavelmente confiar. E, no entanto, tentamos, uma e outra vez, como se o efeito ternurento da nossa desejada idiotice fosse o suficiente.

Compreendemos o tamanho do homem quando somos avassalados e aí ficamos na clara confiança de que o mundo, como nós o conhecemos, não se dá a conhecer. Na verdade, aquele que ama e confia na folha salgada da duna, tem a certa certeza de que o Universo não conspira contra nós e que não seremos nunca mais do que um ponto que se reúne em comunhão com tantos outros: pedra, pão, alcaparra e cravina. Veia de um mesmo corpo, dor de uma mesma mão.

Ora, eu não estou em clara comunhão com nada e o meu umbigo é meu por alguma razão. Perspicácia à parte, um la gardenne que me importa tão pouco, eu sou ser magnânimo de meu território, meu corpo, meu horizonte. A maré significa-me e eu significo-A conforme, a independência de quem se quer na maturação de um ser que é (que, principalmente, esquece o dever-ser).

E agora eu pergunto: e podemos (por aquele raio) ser ambas as coisas?

Friday, January 08, 2010

GLÓRIA

"Tenho cinquenta anos. Devagarinho, quase sem eu dar por isso, os meus seis filhos foram seguindo as suas vidas, até estarem longe, longe. Já há muito tempo que vivo sozinha com a Bolota, numa casa pequenina no alto da montanha, na orla do bosque que não tem fim e de frente para as ondas do Atlântico que nunca acaba. Passam por aqui muitos amigos, mas a companhia íntima dos homens já me desiludiu que chegue e a das mulheres não me interessa absolutamente nada. Estou em paz.

À noite, gosto de me deitar no escuro com a Bolota, a beber um copo e a fumar em silêncio absoluto. Através da janela aberta, ouço o pio dos mochos e o coaxar das rãs, o cair da chuva e as patas dos cavalos. É bom. Enche-me de energia e faz-me sentir disposta a tudo.
Esta noite, não sei porquê, não conseguia tirar os olhos da janela aberta. (...)

Passou-me pela cara um vento morno, carregado de aromas agrestes da floresta, que me brincou nos cabelos, se enroscou neles como uma cobra, e não se foi embora.
Está a acontecer qualquer coisa que não é normal.
Entrou-me no quarto qualquer coisa que veio com o vento. Não consigo vê-la bem, e, curiosamente, não tenho medo nenhum. É uma coisa poderosa e tem que ser boa, porque a Bolota não rosnou nem arrepelou o pêlo. Limitou-se a saltar imediatamente para o chão, como que a dar-lhe o seu lugar ao meu lado. O que quer que seja, já tocou na minha pele de uma forma muito doce. Aqueceu-me logo nesta noite fria. Está a enroscar-se ao meu lado sem qualquer cerimónia. Só pode ser um animal. Um animal muito quente.

Já há muito tempo que conheço o perigo e há muito tempo que me estou nas tintas. O calor do animal aquece-me e anima-me, do fundo da solidão onde construí o meu sossego. Deixo-me deslizar no seu sentido. Dentro da aura dele, sinto-me, como nunca senti antes, a cair devagar numa banheira de mel. É tudo tão doce e calmo, deste lado da cama onde costuma estar a Bolota. Oiço uma voz que não conheço a pronunciar, calmamente, palavras que eu nunca ouvi. Esta criatura fala. E isto é linguagem articulada. Mas é só quando me abraça toda com infinita doçura - pernas, braços, mãos, cabelos, pescoço, queixo - que me dou plenamente conta do meu erro. Este animal é um homem. Foi um homem que voou pela minha janela, no sopro dos zéfiros nocturnos. (...)

Quero absorver tudo o que sei que nunca mais volta a acontecer. A Bolota está a dormir placidamente, e de vez em quando resmoneia nos seus sonhos. Mas isto, dentro da nossa aura, não é um sonho. O homem que veio com o vento é muito grande. Prendeu-me as pernas dentro das suas como se eu fosse um brinquedo sem peso, e está a explorar-me o corpo todo com umas mãos firmes e suaves que parecem do meu tamanho. Continua a falar comigo calmamente, na sua voz de barítono cheia de música longínqua. Eu não sei falar com ele. Limito-me a oferecer-me incondicionalmente e a sorrir. Mesmo sem o ver, sei que ele sorri também.

O homem muito grande está a divertir-se, como se, também ele, já não desfrutasse há muito do corpo despudorado e feliz de uma mulher que gosta do prazer da entrega. Roça-me a língua pelo pescoço, pelos ouvidos, enche-me de arrepios e eu rio. Ele volta a falar, faz-me suar, acaricia-me os cabelos com ternura e depois puxa-mos com toda a força, até me fazer gritar. Quando eu grito, ele ri. E atrai-me para si ainda mais. Depois segura o seu brinquedo contra o torso poderoso que lhe concederam as Forças da Natureza, lentamente, a respirar fundo sobre os meus ombros. É um homem que gosta de brincar. Tem, de facto, muito pouco de humano.

Então, mas isto é um jogo, não é? Porque, se é um jogo, eu também sei jogar. E apetece-me. Deu-me para me sentir estupidamente jovem. Começo a empurrá-lo para trás como se já não quisesse mais carícias, com toda a força que tenho que não é nenhuma contra a dele. Ele prende-me as pernas entre as suas com toda a força, eu tento libertar-me com os joelhos, tento puxar-lhe os cabelos mas ele prende-me as mãos, estamos os dois a rir muito, até a Bolota acorda do fundo do seu sono sem remorsos. Nessa altura, porque ele se distrai, liberto uma mão e acendo a luz da minha cabeceira.Quando olhei pela primeira vez, achei que tinha visto, ao meu lado, na minha cama, a estátua milenar de um semi-deus grego.
Aqui é onde, de súbito, me sinto com medo da minha própria mente. (...)

Ou seja. Eu para aqui a construir todo este belo edifício artístico que o corpo e as mãos deste homem me inspiram. E, como acontece tantas vezes, a esquecer-me do lado irracional da existência onde tantas vezes se cristalizam os nossos actos mais profundos. Para os deistas, não havia cá conversas de deuses pagãos, ou de santos postos no seu lugar pela cristianização do Império Romano nos tempos de Constantino. Talvez eu esperasse ver um prodígio natural deitado ao meu lado na cama, não sei, agora que penso nisso - talvez alguma composição fenomenal do Arcimboldo.

E isso, de facto, seria assaz patético.

O que eu não esperava, de certeza, era esta perfeição de linhas, este sorriso de mármore, esta simetria perfeita de traços, esta beleza rigorosa e compulsiva de um Antínuo esquecido debaixo das pedras, ou de um David renascentista num museu. E a flexibilidade quente do corpo da estátua, cada vez mais colado meu. Tudo se contradiz, enquanto o nosso prazer vai subindo imperiosamente de grau no mesmo termómetro de Réaumur que mediu a temperatura do dia do Grande Terramoto de Lisboa.
Não há mais perímetros definidos?
Ainda bem.

Na glória imensa desta noite sem regras, dou-me ao luxo de fechar finalmente os olhos de puro gozo quando o homem mágico me cobre e de uma vez por todas me enche de si, pujante, quente, pleno, feliz de um desejo tão grande como o meu, agora tão silencioso e compenetrado como eu estou. Deixo-me levar nesta onda magnífica do mesmo mar que rebenta na praia com um estrondo que chega à minha janela, e só volto a abrir os olhos muito tempo depois.
O arquétipo clássico desapareceu. Dentro de mim, em cima de mim, a olhar para mim com um olhar que tem tanto de prazer como de surpresa, está um arcanjo guerreiro pré-rafaelita. É como se uma criatura divina que ia combater o Mal num cavalo branco tivesse momentaneamente pousado o arco, e as setas, e as flechas, e até talvez a espada. Tudo porque cedeu a uma tentação incontrolável, cem por cento extra-programa, que está agora a falar-lhe aos sentidos de uma forma que até então lhe era desconhecida, e que se revela imensamente gratificante.

Meu Deus, é tão bonito.

Não consigo tirar os meus olhos humanos dos olhos líquidos dele.
Talvez o Mal ainda possa andar um bom bocado à solta no que resta desta noite.

Não. Bastou um sopro, um passe de capa do vento, e o arcanjo já se foi embora. O Mal que aguente a sua investida, porque na minha cama a parada subiu de tom. Não sei quem me possui desta maneira. Nem sequer sabia que era possível voar tão alto à superfície da Terra. Volto a fechar os olhos, volto a deixar-me levar, sinto o suor deslizar pelos nossos corpos colados, oiço a respiração dele cada vez mais fremente nas narinas, e tudo no seu abraço enorme continua a dizer-me que não tenha medo. Quando abro os olhos, só me ocorre uma palavra -- Bucéfalo.

Há qualquer coisa de inominavelmente grandioso em ser-se a mulher do garanhão negro que acompanhou Alexandre o Grande em todas as suas batalhas. E mais ainda em atingir o clímax com ele, num berro sem fim que sacode a montanha e cala o mar.
É neste pacto secreto que adormecemos em paz, estafados, totalmente emaranhados um no outro.

Levantei-me devagarinho, com a brisa doce e cheia de flores da manhã a brincar suavemente na trepadeira, para ir abrir a porta à Bolota. Sentia-me a cintilar por dentro. A criatura mitológica continuava ali em plena luz do dia.

Olha, querida, trazes-me um café lá de baixo? Se faz favor?

Que é isto?

Virei-me como se tivesse sido mordida por um bicho, com o coração a bater na garganta. Aquilo era um homem. Tinha-se sentado no meio das almofadas com o cabelo todo desgrenhado, e estava a acabar de acender um cigarro com um sorriso rasgado completamente canalha.

Mas afinal tu falas?

Só quando vale a pena.

(...)

És mesmo um homem. Vou buscar o café sem mais demora, chefe. E vais ficar por aqui quanto tempo, já agora, só para eu depois ir à mercearia comprar aquelas porcarias todas de que os homens gostam?

Ele espreguiçou-se todo de puro conforto, com o tal sorriso velhaco a ficar cada vez mais doce.

O resto da vida, estrela-do-mar
."