Wednesday, February 24, 2010

Nunca li um texto que fosse tão eu.

Tenho o santo horror da frieza calculada, da boa educação, do prudente juízo duma mulher. Aos homens pertence tudo isso, e a mulher deve ser muito feminina, muito espontânea, muito cheia de pequeninos nadas que encantem e que embalem. Meu amigo, se esperas ter uma mulher sem areia nenhuma, morres de aborrecimento e de frio ao pé dela e não será com certeza ao pé de mim... Comigo hás-de ter sempre que pensar e que fazer. Hás-de rir das minhas tolices, hás-de ralhar quando elas passarem a disparates (hão-de ser pequeninos...) e hás-de gostar mais de mim assim, do que se eu fosse a própria deusa Minerva com todo o juízo que todos os deuses lhe deram.”

Florbela Espanca

Friday, February 19, 2010

O hoje e uma passagem de tempo

Quem diria que eu faria a reforma do tempo. A reforma dos dias. De todos os dias, mas especialmente de alguns... isso deixa-me feliz. A passagem do tempo (que traz tantos inconvenientes ao ser humano) traz-lhe também a vantagem do esquecimento. Esquecemos (tantas vezes) o quando fomos felizes a comer aquele gelado naquela esplanada daquele café no dia x do mês y do ano da graça de alguém, mas o esquecimento do que nos é dificilmente esquecível é o presente de compensação. Ora, neste dia que mudou a minha vida (já que 19 de Fevereiro há três anos não é um dia x de um qualquer mês y), agradeço o que vai e o que fica, a retenção das camadas de vida que nos aquecem no futuro. E hoje sinto-me quente.

Wednesday, February 10, 2010

Uma lição de vida

Estou contente porque a minha querida não tem ainda o afecto exclusivo e único que há-de sentir um dia por um homem, apesar de todas as suas teorias que há-de ver voar, voar para tão longe ainda!... E no entanto, elas são tão verdadeiras!
Ainda assim, minha querida Júlia, uma das coisas melhores da nossa vida de tão prosaico século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério; as nossas pétalas de rosa e a nossa coroa de espinhos. O amor único, doce e sentimental da nossa alma de portugueses, o amor de que fala Júlio Dantas, «uma ternura casta, uma ternura sã» de que «o peito que o sente é um sacrário estrela­do», como diz Junqueiro; o amor que é a razão única da vida que se vive e da alma que se tem; a paixão delicada que dá beijos ao luar e alma a tudo, desde o olhar ao sorriso, — é ainda uma coisa nobre, bela e digna! Digna de si, do seu sentir, do seu grande coração, ao mesmo tempo violento e calmo. Esse amor que «em sendo triste, canta, e em sendo alegre, chora», esse amor há-de senti-lo um dia, e embora morto, perfumar-lhe-á a alma até à morte, num perfume de saudade que jamais o tempo levará!
No entanto, o casamento é brutal, como a posse é sempre brutal, sempre! O melhor beijo, o beijo mais doce, aquele que se não esquece nunca, é aquele que nunca se deu, disse-o um dia um poeta, e eu creio. Só para as mulheres, as tais mulheres mais animais que espirituais, é que o casamento não é a desilusão de sempre, — mas então nós? Se ganhamos um grande amigo, o que nós sofremos muitas vezes! A revolta de tudo quanto há de delicado em nós, e que se ofende e se indigna com as afrontas que são afinal uma grande lei da Natureza! E não há homem, por superior que seja, que com­preenda esta revolta e que a desculpe! Em tudo eu penso exactamente o mesmo que a minha querida Júlia; não há nada, tanto para os homens como para a mulher, que valha a liberdade tanto alma como de pensa­mento.
É o casamento um grilhão de flores e risos? De acor­do, mas é sempre um grilhão.
Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém, mas nunca abdique nem uma só das suas graças, nem uma só das suas ideias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência, que fica tão bem às mulheres boni­tas; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro; nós invertemos muitas vezes os papéis, e em proveito deles, e depois as consequências são muitas vezes as paixões que devastam uma vida inteira por criaturas que se dignam dar, por último, como humilde mortalha, um olhar de compaixão!
O melhor de todos os homens não vale um fanatismo, creia-me, e embora a nossa alma, com essa ânsia de amor, de ternura que canta sempre em nós, se lhes dedique completamente, que eles o não sai­bam nunca, que não suspeitem sequer!... Abdicando um grau da nossa realeza, teremos de descer sempre, sempre, até ao fim. Não é verdade isto?
Florbela Espanca

Monday, February 08, 2010

Brotar de alma

E assim, do que nada era, se nasce e vê brotar um pequeno tudo. Sem transpirar o que tem de um ardor especial, deixa-se queimar em lume, o brando, confortável mas constante, sempre presente, sempre lume. Pode haver (há) momentos em que a humanidade mói e polui mas o choque não existe e o olhar adiante é mais forte. Sem grandes transições e restrições queria apenas dizer-te (e aqui que sei não leres) que no receio de hoje construiremos a força de amanhã. E eu confio em ti...

Thursday, February 04, 2010

Noção de Lar.

Quando li Os três casamentos de Camila S. fui apanhada de surpresa. Confesso que não esperava mergulhar no amor recôndito de alguém tão profundamente frágil e forte, de um escancarar de aceitação do que é a vida e o sonho, o que é o "tempo a seu tempo". O Pranto de Lúcifer, Os Pássaros de Seda, O Prenúncio das Águas, A Trança de Inês e A Flor do Sal, são tudo visões de um mesmo olhar que li, no qual o meu mundo descansa e viaja.
No entanto, houve uma surpresa maior que esta. Estava eu sentada, em espera de mais um daqueles concertos de música clássica que engulo na Gulbenkian, quando a vejo, "A" Rosa Lobato Faria, com o olhar profundo, a apoiar o andar daquele que reclama ser o homem da sua vida (que veio a falecer no dia do meu aniversário...). Olhou para mim e sorriu. Naquele momento apreendi o que já tinha lido no "seu" (O) Sétimo Véu: porque não vale a pena cumprir feitos heróicos, dar a volta ao mundo num bote, ganhar o prémio Nobel, descobrir a pólvora, se não tivermos um lugar onde voltar, onde alguém nos espera com uma sopa e um sorriso.
Fará falta. Como dizias: "À nossa".
Only the good...