Monday, January 18, 2010

Dia a Dia em pacotes de açúcar

Um dia vou ter contigo quando menos esperares. Um dia troco o certo pelo incerto. Um dia vou-me apaixonar pela pessoa certa. Um dia levo-te para um elevador e carrego no "stop". Um dia quebro a rotina. Um dia sentes um pontapé na minha barriga. Um dia parto a loiça toda. Um dia levo-te o pequeno-almoço à cama. Um dia vais ao castigo. Um dia faço-te a folha. Um dia faço-te um striptease. Um dia vou conquistar a minha paz de espírito e a minha liberdade. Um dia vou-te provar. Um dia mando o chefe passear. Um dia deixo de pensar em ti e parto para outra. Um dia atiro-me de cabeça. Um dia vou lutar pelo que quero. Um dia digo-te que o teu lugar é comigo. Um dia hei-de compensar-te por tudo. Um dia arrisco a ver se petisco. Um dia dou um beijo à homem aranha. Um dia vou falar menos e ouvir mais. Um dia farei de ti a pessoa mais feliz do mundo. Um dia beijo-te a meio de uma frase. Um dia largamos tudo e fugimos juntos. Um dia vou sair para a rua e gritar que sou feliz. Um dia ainda faço 300 kms para estar contigo. Um dia peço-te em casamento. Um dia vou ter um filho lindo. Um dia nunca mais digo "um dia".

Um dia procuro-me e encontro-te.

Friday, January 15, 2010

Consciência

A cada hora que passa uma suave brisa de norte arrasa com as certezas. Ou mais do que uma brisa?! Não há um momento em que possamos inevitavelmente confiar. E, no entanto, tentamos, uma e outra vez, como se o efeito ternurento da nossa desejada idiotice fosse o suficiente.

Compreendemos o tamanho do homem quando somos avassalados e aí ficamos na clara confiança de que o mundo, como nós o conhecemos, não se dá a conhecer. Na verdade, aquele que ama e confia na folha salgada da duna, tem a certa certeza de que o Universo não conspira contra nós e que não seremos nunca mais do que um ponto que se reúne em comunhão com tantos outros: pedra, pão, alcaparra e cravina. Veia de um mesmo corpo, dor de uma mesma mão.

Ora, eu não estou em clara comunhão com nada e o meu umbigo é meu por alguma razão. Perspicácia à parte, um la gardenne que me importa tão pouco, eu sou ser magnânimo de meu território, meu corpo, meu horizonte. A maré significa-me e eu significo-A conforme, a independência de quem se quer na maturação de um ser que é (que, principalmente, esquece o dever-ser).

E agora eu pergunto: e podemos (por aquele raio) ser ambas as coisas?

Friday, January 08, 2010

GLÓRIA

"Tenho cinquenta anos. Devagarinho, quase sem eu dar por isso, os meus seis filhos foram seguindo as suas vidas, até estarem longe, longe. Já há muito tempo que vivo sozinha com a Bolota, numa casa pequenina no alto da montanha, na orla do bosque que não tem fim e de frente para as ondas do Atlântico que nunca acaba. Passam por aqui muitos amigos, mas a companhia íntima dos homens já me desiludiu que chegue e a das mulheres não me interessa absolutamente nada. Estou em paz.

À noite, gosto de me deitar no escuro com a Bolota, a beber um copo e a fumar em silêncio absoluto. Através da janela aberta, ouço o pio dos mochos e o coaxar das rãs, o cair da chuva e as patas dos cavalos. É bom. Enche-me de energia e faz-me sentir disposta a tudo.
Esta noite, não sei porquê, não conseguia tirar os olhos da janela aberta. (...)

Passou-me pela cara um vento morno, carregado de aromas agrestes da floresta, que me brincou nos cabelos, se enroscou neles como uma cobra, e não se foi embora.
Está a acontecer qualquer coisa que não é normal.
Entrou-me no quarto qualquer coisa que veio com o vento. Não consigo vê-la bem, e, curiosamente, não tenho medo nenhum. É uma coisa poderosa e tem que ser boa, porque a Bolota não rosnou nem arrepelou o pêlo. Limitou-se a saltar imediatamente para o chão, como que a dar-lhe o seu lugar ao meu lado. O que quer que seja, já tocou na minha pele de uma forma muito doce. Aqueceu-me logo nesta noite fria. Está a enroscar-se ao meu lado sem qualquer cerimónia. Só pode ser um animal. Um animal muito quente.

Já há muito tempo que conheço o perigo e há muito tempo que me estou nas tintas. O calor do animal aquece-me e anima-me, do fundo da solidão onde construí o meu sossego. Deixo-me deslizar no seu sentido. Dentro da aura dele, sinto-me, como nunca senti antes, a cair devagar numa banheira de mel. É tudo tão doce e calmo, deste lado da cama onde costuma estar a Bolota. Oiço uma voz que não conheço a pronunciar, calmamente, palavras que eu nunca ouvi. Esta criatura fala. E isto é linguagem articulada. Mas é só quando me abraça toda com infinita doçura - pernas, braços, mãos, cabelos, pescoço, queixo - que me dou plenamente conta do meu erro. Este animal é um homem. Foi um homem que voou pela minha janela, no sopro dos zéfiros nocturnos. (...)

Quero absorver tudo o que sei que nunca mais volta a acontecer. A Bolota está a dormir placidamente, e de vez em quando resmoneia nos seus sonhos. Mas isto, dentro da nossa aura, não é um sonho. O homem que veio com o vento é muito grande. Prendeu-me as pernas dentro das suas como se eu fosse um brinquedo sem peso, e está a explorar-me o corpo todo com umas mãos firmes e suaves que parecem do meu tamanho. Continua a falar comigo calmamente, na sua voz de barítono cheia de música longínqua. Eu não sei falar com ele. Limito-me a oferecer-me incondicionalmente e a sorrir. Mesmo sem o ver, sei que ele sorri também.

O homem muito grande está a divertir-se, como se, também ele, já não desfrutasse há muito do corpo despudorado e feliz de uma mulher que gosta do prazer da entrega. Roça-me a língua pelo pescoço, pelos ouvidos, enche-me de arrepios e eu rio. Ele volta a falar, faz-me suar, acaricia-me os cabelos com ternura e depois puxa-mos com toda a força, até me fazer gritar. Quando eu grito, ele ri. E atrai-me para si ainda mais. Depois segura o seu brinquedo contra o torso poderoso que lhe concederam as Forças da Natureza, lentamente, a respirar fundo sobre os meus ombros. É um homem que gosta de brincar. Tem, de facto, muito pouco de humano.

Então, mas isto é um jogo, não é? Porque, se é um jogo, eu também sei jogar. E apetece-me. Deu-me para me sentir estupidamente jovem. Começo a empurrá-lo para trás como se já não quisesse mais carícias, com toda a força que tenho que não é nenhuma contra a dele. Ele prende-me as pernas entre as suas com toda a força, eu tento libertar-me com os joelhos, tento puxar-lhe os cabelos mas ele prende-me as mãos, estamos os dois a rir muito, até a Bolota acorda do fundo do seu sono sem remorsos. Nessa altura, porque ele se distrai, liberto uma mão e acendo a luz da minha cabeceira.Quando olhei pela primeira vez, achei que tinha visto, ao meu lado, na minha cama, a estátua milenar de um semi-deus grego.
Aqui é onde, de súbito, me sinto com medo da minha própria mente. (...)

Ou seja. Eu para aqui a construir todo este belo edifício artístico que o corpo e as mãos deste homem me inspiram. E, como acontece tantas vezes, a esquecer-me do lado irracional da existência onde tantas vezes se cristalizam os nossos actos mais profundos. Para os deistas, não havia cá conversas de deuses pagãos, ou de santos postos no seu lugar pela cristianização do Império Romano nos tempos de Constantino. Talvez eu esperasse ver um prodígio natural deitado ao meu lado na cama, não sei, agora que penso nisso - talvez alguma composição fenomenal do Arcimboldo.

E isso, de facto, seria assaz patético.

O que eu não esperava, de certeza, era esta perfeição de linhas, este sorriso de mármore, esta simetria perfeita de traços, esta beleza rigorosa e compulsiva de um Antínuo esquecido debaixo das pedras, ou de um David renascentista num museu. E a flexibilidade quente do corpo da estátua, cada vez mais colado meu. Tudo se contradiz, enquanto o nosso prazer vai subindo imperiosamente de grau no mesmo termómetro de Réaumur que mediu a temperatura do dia do Grande Terramoto de Lisboa.
Não há mais perímetros definidos?
Ainda bem.

Na glória imensa desta noite sem regras, dou-me ao luxo de fechar finalmente os olhos de puro gozo quando o homem mágico me cobre e de uma vez por todas me enche de si, pujante, quente, pleno, feliz de um desejo tão grande como o meu, agora tão silencioso e compenetrado como eu estou. Deixo-me levar nesta onda magnífica do mesmo mar que rebenta na praia com um estrondo que chega à minha janela, e só volto a abrir os olhos muito tempo depois.
O arquétipo clássico desapareceu. Dentro de mim, em cima de mim, a olhar para mim com um olhar que tem tanto de prazer como de surpresa, está um arcanjo guerreiro pré-rafaelita. É como se uma criatura divina que ia combater o Mal num cavalo branco tivesse momentaneamente pousado o arco, e as setas, e as flechas, e até talvez a espada. Tudo porque cedeu a uma tentação incontrolável, cem por cento extra-programa, que está agora a falar-lhe aos sentidos de uma forma que até então lhe era desconhecida, e que se revela imensamente gratificante.

Meu Deus, é tão bonito.

Não consigo tirar os meus olhos humanos dos olhos líquidos dele.
Talvez o Mal ainda possa andar um bom bocado à solta no que resta desta noite.

Não. Bastou um sopro, um passe de capa do vento, e o arcanjo já se foi embora. O Mal que aguente a sua investida, porque na minha cama a parada subiu de tom. Não sei quem me possui desta maneira. Nem sequer sabia que era possível voar tão alto à superfície da Terra. Volto a fechar os olhos, volto a deixar-me levar, sinto o suor deslizar pelos nossos corpos colados, oiço a respiração dele cada vez mais fremente nas narinas, e tudo no seu abraço enorme continua a dizer-me que não tenha medo. Quando abro os olhos, só me ocorre uma palavra -- Bucéfalo.

Há qualquer coisa de inominavelmente grandioso em ser-se a mulher do garanhão negro que acompanhou Alexandre o Grande em todas as suas batalhas. E mais ainda em atingir o clímax com ele, num berro sem fim que sacode a montanha e cala o mar.
É neste pacto secreto que adormecemos em paz, estafados, totalmente emaranhados um no outro.

Levantei-me devagarinho, com a brisa doce e cheia de flores da manhã a brincar suavemente na trepadeira, para ir abrir a porta à Bolota. Sentia-me a cintilar por dentro. A criatura mitológica continuava ali em plena luz do dia.

Olha, querida, trazes-me um café lá de baixo? Se faz favor?

Que é isto?

Virei-me como se tivesse sido mordida por um bicho, com o coração a bater na garganta. Aquilo era um homem. Tinha-se sentado no meio das almofadas com o cabelo todo desgrenhado, e estava a acabar de acender um cigarro com um sorriso rasgado completamente canalha.

Mas afinal tu falas?

Só quando vale a pena.

(...)

És mesmo um homem. Vou buscar o café sem mais demora, chefe. E vais ficar por aqui quanto tempo, já agora, só para eu depois ir à mercearia comprar aquelas porcarias todas de que os homens gostam?

Ele espreguiçou-se todo de puro conforto, com o tal sorriso velhaco a ficar cada vez mais doce.

O resto da vida, estrela-do-mar
."